O CAMAREIRO DO REI

Novembro 2, 2018 Não Por love amem

ERA uma vez um rei muito amigo dos seus camaristas, e prometeu a cada um um dote para se casarem. Um deles quis ir viajar para escolher mulher que fosse linda, esperta e honrada. Chegou a uma grande quinta, e logo nos primeiros degraus que davam para a casa encontrou uma menina linda a mais não ser. Pediu pousada, e veio um velho lavrador que o recebeu com boas maneiras e foi-lhe mostrar a casa:

— Que tal lhe parece?

— Acho-a excelente; mas só o frontispício é que está muito baixo.

Foi o velho lavrador mostrar-lhe os seus campos e sementeiras:

— Então que tal as acha?

.— Muito boas, se não estiverem já comidas.

O lavrador nada percebia do que ouvia; porque a fachada da casa era alta, e tinha ainda as tulhas cheias de grãos. À noite apareceu à mesa uma magnífica galinha que a filha do lavrador trinchou, dando a cabeça ao pai, as asas à mãe, os pés para o hóspede, e ficou com o peito para si. O lavrador não quis perguntar à filha por que é que fazia aquilo; mas de noite, no seu quarto, contou à mulher a conversa com o camareiro, e notou como a filha tinha trinchado a galinha.

A filha que ouviu tudo do seu quarto, diss de lá:

— Eu sei o que queria dizer o nosso hóspede; frontispício da, casa era muito baixo, dizia-o p mim,, porque me encontrou no patamar da escada a seara já comida referia-se ao caso de meu pai te dívidas, porque o que colhesse era tudo para a pagar.

— Muito bem, disse o pai; e agora me dirás: porque me deste à noite a cabeça da galinha para mim, as asas a tua mãe, e os pés ao nosso hóspede?’

— Dei a meu pai a cabeça, porque a si lhe compete o governo da casa; a minha mãe as asas, para agasalhar a família; ao hóspede as pernas, porque ele anda em viagem; para mim o peito, para ser forte contra as desgraças que por amor dele me vierem.

O camarista ouviu tudo, e se já gostava da menina porque era formosa, ainda ficou mais encantado com a sua esperteza. No outro dia resolveu pedí-la ao pai, que lhe deu o consentimento. Veio com ela viver para a corte, mas não quis apresentar a mulher ao rei. O rei andava desconfiado que não seria bonita, e jurou de a ver, desse por onde desse. Rondava-lhe a rua, mas as janelas estavam sempre com as cortinas corridas; por fim sempre comprou uma criada, que o deixou entrar no quarto da senhora quando ela estava dormindo e tinha o marido fora da terra. O rei jurou-lhe que não lhe poria mão, e que era só para vê-la. Entrou no quarto de dormir pé ante pé, e viu uma bela camilha com cortinas de damasco verde, cerradas; abriu-as, e viu a cara mais linda do mundo. Nisto vem a criada de repente dizer que fugisse, porque chegava o amo. O rei com a pressa deixou cair uma luva. O camareiro veio para o seu quarto e a primeira cousa que viu foi a luva; ficou desconfiado, e nunca mais tratou bem a mulher. Era um inferno em casa. A criada com remorsos de ter feito aquilo àqueles bem-casados, foi contá-lo ao rei. O rei lembrou-se de que tinha perdido a luva, e mandou chamar o camareiro, e disse-lhe:

— Tendes-me feito uma grande desfeita em nunca me terdes apresentado a vossa mulher para ti conhecer.

— Senhor, é que ela é muito doente.

— Pois sim; amanhã vou jantar à vossa casa. No dia seguinte foi. A mulher do camareiro

foi a última a sentar-se à mesa, e assim que se sentou, como havia mais de um ano que não comia com o marido, desatou a chorar. O rei perguntou-lhe porque é que ela chorava tanto. Ela respondeu:

Eu era amada do coração,

Hoje não o sou, nem sei porque não.

Respondeu o camareiro:

Quando eu na minha vinha entrei, Rasto de ladrão achei.

Respondeu o rei:

Eu fui o tal ladrão Que na tua vinha entrei; Verdes parras arredei; Lindos cachos de uvas vi; Mas juro-te á fé de Rei Que eu nas uvas não buli.

O rei explicou como as verdes parras eram cortinados de damasco, como vira os braços desço bertos, e como se fora embora tendo-lhe caído um luva com a pressa. O camareiro ficou muito co tente, percebeu os perigos da grande curiosidade, nunca mais fechou a mulher, que na corte era co nhecida por todos como a mais linda, esperta honrada.

 

Fonte: Os melhores contos Populares de Portugal. Org. de Câmara Cascudo. Dois Mundos Editora.

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